Migalhas do pensamento
Entenda como tem início o preconceito para com a atitude filosófica nos dias de hoje
por Marcus Rafael Rodrigues*
Uma das apostilas do Ensino Médio da rede pública do Estado de São Paulo, os chamados "cadernos do aluno", traz um texto cuja maior referência é o filósofo italiano Antonio Gramsci. O texto dá apontamentos que visam conduzir, em linhas gerais, o estudante à compreensão de como se origina o preconceito, mas também mostra como a filosofia pode nascer daquilo que chamamos de bom senso.
Por bom senso não entendemos aquilo que René Descartes expressou no início do Discurso do Método: "A faculdade de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, propriamente chamado de bom senso ou razão, é, por natureza, igual em todos os homens". Bem, na verdade, a perspectiva cartesiana sobre o bom senso parte de uma compreensão positiva do mesmo, como se este fizesse parte da condição humana e, por isso, irrevogavelmente o ser humano sempre agisse com base no bom senso quando quisesse estabelecer um juízo de valor sobre alguma coisa.
Com o conceito de atitude filosófica deparamos, senão com a maior, certamente com uma das maiores e mais genuínas ideias sobre a filosofia, uma vez que é quase consensual a interpretação da mesma sob a ótica humana. O que lhe confere, em última instância, um caráter de universalidade, e ao mesmo tempo, de compreensibilidade para a mesma, assim como sugere A. Gramsci ao mencionar que "todos os homens são filósofos", pois são capazes de filosofar através do seu dia a dia, das diversas situações em que se encontram frente ao inusitado, ao inesperado e ao complexo. A atitude filosófica é, sem dúvida, atitude humana e profundamente humana, da interrogação e da falta de compreensão ante à natureza, que corrobora nossa fragilidade e, porque não dizer, nossa falência, sobretudo no âmbito relacional e produtivo. Em suma, filosofar é deixar-se conduzir pela arguição, pelo assombro e, muitas das vezes, tornar-se um com o novo saber, do qual se está enamorado, aceitando assim não somente a diferença que vicia e ilude, mas que amadurece o pensamento.
A ALMA INTELIGENTE
O grande problema da Filosofia nos dias de hoje, em que o militarismo instituído não mais determina os comportamentos e a erudição, é enfrentar com aquilo que Sócrates chama de alma inteligente, ou intelectiva, os desafios propostos ou os empecilhos postos pela ditadura velada, e ao mesmo tempo eficaz, do dinheiro, do capital, do consumismo, do mercado de trabalho, do neoliberalismo, da globalização e, principalmente, da desvalorização das questões referentes a humanidades. Essas, por sua vez, tornam-se cada vez mais relativizadas em prol de conquistas financeiras cada vez maiores, como impõe o sistema monetário do capitalismo "democrático" deste século.
Nos relatos dos estudantes do Ensino Médio da rede pública, nas cidades do interior, onde se pode observar uma realidade muitas vezes mais carente e desprovida de recursos quando comparada com a realidade do ensino particular e dos grandes centros, é possível perceber parte desta realidade em que as questões de humanidades não carregam consigo o efeito de impacto que trazem as disciplinas de exatas. Isso ocorre, em justa medida, pela própria pressão sofrida pelos jovens quando de sua decisão quanto à profissão que desejam desempenhar; são os próprios pais que sob o pretexto de felicidade (financeira), implementam a ideia de valorização de profissões financeiramente rentáveis. Se assim pode-se chamar, com o capitalismo desenfreado há um "inconsciente coletivo" que caminha na direção de um verdadeiro colapso monetário, pois o que não se percebe é que as próprias relações (humanas), essenciais para a sobrevivência, tornam-se ameaçadas. E isso desde os relacionamentos macro das nações europeias, asiáticas, latino americanas e africanas, até os pequenos relacionamentos profissionais internos das micro e médias empresas, do setor público e, especificamente, a menor das células sociais, a própria família.
Hoje, mais do que nunca, o preconceito para com a Filosofia passa por uma ditadura do útil, do rentável e do menor esforço, e assim as consequências da ausência de atitude filosófica são falta de voz, de comunicação, excessos que lembram prepotência e uma conduta massificada que visa tão somente o bem-estar sob o espectro do desenvolvimento do capital a todo custo. O que se deseja realmente de uma sociedade senão o equilíbrio de suas capacidades? Quando Gramsci sugere que é preciso destruir o preconceito para com a Filosofia é porque já havia constatado aquilo que Nicolla Abbagnano sugere em seu dicionário de Filosofia, ou seja, que a noção de bom senso "tem como referência apenas o sistema estabelecido de crenças e de opiniões, só podendo julgar a partir dos valores que esse sistema inclui".
Assim, em uma sociedade em que as profissões de caráter humano são desvalorizadas, necessariamente não se pode esperar que o bom senso tenha como pauta a atitude filosófica, pois o que está em evidência é a manutenção da mentalidade massificada pela exatidão dos dividendos do capitalismo.
REFERÊNCIAS |
ABBAGNANO, Nicolla. Dicionário de Filosofia. 5ª Ed. São Paulo, 2007 http://www.antoniogramsci.com |
Marcus Rafael Rodrigues é bacharel em Filosofia pela Universidade de Sorocaba (2003), bacharel em Teologia pelo Instituto João Paulo II - Sorocaba (2007), licenciado em filosofia pela Universidade Metropolitana de Santos (2010); Especializado em História, cultura e teologia judaicocristã pelo Instituto Sionita (UNIFAI-2010), é professor de Filosofia na Rede Pública do Estado de São Paulo